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Sobre vitórias guardadas em abismos

  • Ligia Rebelato Machado
  • 31 de mar. de 2022
  • 3 min de leitura

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Waltercio Caldas. Sem título. Aço inoxidável polido e acrílico. 86 x 110 x 46 cm. 2013.


Hastes cilíndricas de aço inoxidável polido delineiam o corpo da obra. A persistência do vazio mantido pela distância entre as bases sinaliza que a obra constitui-se pelo conjunto de duas partes. Acima das hastes que compõem as bases dispõem-se horizontalmente outras quatro. Duas grandes hastes verticais, conectadas à base, sustentam as horizontais. Sutis angulações fazem das hastes superiores horizontais marcadoras de invisíveis planos paralelos. Sobre elas formas vermelhas travestidas de setas conectam-se, suaves em suas transparências, através de um delicado amarrar de linhas, revelando o fazer manual do artista. Estas, também vermelhas, brincam com a rigidez retilínea da obra. As formas acopladas destacam-se não apenas pela cor e pelo modo “rústico” com que se unem ao corpo de uma obra cujas partes conectam-se sem deixar vestígios claros, mas também pelo aspecto ríspido dado por suas bordas, que formam pequenos ângulos de noventa graus. Envoltas pelo que se abriga nas lembranças do vermelho, elas incutem às hastes o poder de violenta perfuração.


Essas formas ajuntadas incomodam. Elas destacam-se do todo com certa rudeza; elas levantam dúvidas que se misturam à ausência de um sentido que as justifique ali; setas que impõem aos olhos direções perdidas entre aleatoriedades desinteressadas. Os olhos voltam-se para o todo, tomado por incômodo. Fitando a seta, eles seguem para a direção apontada. Mas a fluidez é interrompida pela haste vertical. Então buscam o sentido oposto, mas uma nova interrupção frustra a tentativa de estabelecer o ainda premente desejo de fluxo: a haste horizontal desfaz-se em sua incompletude. A distância que a obra impõe a quem a observa parece intransponível.


Em nova interação, o desafio que emana da forma soma-se a um resquício de derrota, oriundo da experiência anterior. O olhar audazmente encara a obra. O que antes apresentou-se como um corpo composto por duas partes, agora mostra-se como uma unidade, de modo que as hastes verticais anunciam um plano sobre o qual, como em uma tela, algo se apresentará.


Os invisíveis planos paralelos marcados pelas hastes horizontais insinuam-se mais claramente, através dos quais distintas profundidades estabelecem-se. Subitamente, uma paisagem começa a despontar no interior desse quadrante ilusório. A reta então formada pela haste apresenta traços de um horizonte, e sobre ela um elemento longínquo, agora desprendido da ideia de uma seta, apoia-se. Sobre a linha que marca o plano ilusório mais próximo, outro elemento também se apoia. As luzes do espaço refletem-se nas hastes, sobre as quais fervilham, conforme o corpo se movimenta, pequenos pontos reluzentes. Nessa paisagem, as formas vermelhas agora parecem vestígios de algo que longe flutua sobre uma ampla superfície, cujas irregularidades produzidas pelo constante movimento fazem explodir aqueles milhares de pequenos pontos que cintilam sob os raios de uma intensa luz.


A magia desse aparecimento é encorajadora, e convida o corpo a movimentar-se ao redor da obra. Os olhos posicionam-se de modo que as hastes horizontais mais próximas se sobreponham. O corpo busca a posição exata na qual se apresenta à visão uma imagem formada pelo encontro das partes abertas das estruturas vermelhas. Surge, então, um único elemento, que se faz ver através de uma volumetria estabelecida pelas linhas que o delineiam. Esse novo ângulo presenteia o olhar com uma pequena caixa. Pequenas caixas ali estão, como as muitas criadas por Caldas, capazes de guardar o abismo onde tudo cabe. Com o movimento do corpo, a caixa expande-se horizontalmente, até que o elemento único se desfaz e as partes voltam a ser setas, apontando para uma direção não mais aleatória, mas para a qual deslizam nessa linha do horizonte imaginária.


O olhar retoma novamente o todo da obra, e segue rumo ao mesmo alinhamento nas hastes superiores. A linha do horizonte que ali desponta alude às altas linhas do horizonte tão comuns nas obras renascentistas. Os movimentos constantes que transbordam dessa paisagem, originados de incompletudes, dissoluções e rearranjos, encantam o olhar. É como estar diante da Maiastra, de Brancusi, cuja forma única inclui todas as variações possíveis do animal.


Sobre a superfície na qual a obra está apoiada, as sombras retilíneas continuam a brincadeira de fazer e desfazer formas que se constituem em meio à mescla de imaterialidade e materialidade.


Mais uma vez, o olhar volta-se para o todo. O resquício de derrota que então emanara da forma agora cede lugar a um saboroso gosto de vitória.


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